domingo, novembro 18, 2007

Passou mais de 8 anos na prisão e vários cerceado de direitos políticos mas,
NUNCA SE SENTIU PRESO MAS SIM UM SER LIVRE!
No longínquo dia 19 de Março de 1950, ainda a madrugada não tinha dado lugar à manhã, os guardiões do regime salazarista irromperam pelo número 36 da Rua Jacinto dos Mártires Falcão. Aí, na sua residência, Leocádio Teodoro do Vale, então com 26 anos, seria preso devido ao exercício de actividades subversivas”.Nesse ano eram presos trinta e um alpiarcenses, No ano em que Alfredo Lima foi atingido mortalmente por balas de um guarda da GNR.Segundo a PIDE, Leocádio do Vale (ou “Duarte”) faz parte, desde 1948, da organização clandestina “P.C.P."e é membro do Comité Local de Alpiarça.Mas ele não consegue essa precisão. Desde cachopo que se considera aderente a um movimento revolucionário, com participações em reuniões com pessoas de gerações anteriores à sua. Mais anarco-sindicalistas que comunistas. Confiavam nele.Sente a Guerra Civil de Espanha de uma forma especial, como alguns desses. Pensam em exercitar técnicas de guerrilha. É entendimento que esse maldito conflito iria transpôr a fronteira e os revolucionários deveriam estar prontos a agir, conforme as suas convicções. As de um adolescente.
Nessa sua primeira prisão ficaria cerca de 32 meses por detrás das grades ( pronunciado por crime de conspiração). Nada para que não estivesse preparado psicologicamente."Ao fazer aquela opção de vida, eu sabia ao que ia",diz-nos com firmeza. Também consciente do sofrimento com que a sua família iria passar. Mas não podia ficar alheado de tantas injustiças. “Eu não podia ter essa ideia retrógrada de ficar quieto’.
Deixava um filho com apenas 14 meses, que adoeceria gravemente, a ponto de um médico chegar a “desenganar" a Teodósia, sua companheira, que deixou de ganhar “férias”, mesmo de miséria que fossem, para ficar a cuidar da criança. Que, como outras mulheres de Alpiarça, aguentaram uma grande carga, em silêncio e a gerirem sozinhas as suas casas, porque os seus “homens” estavam presos, por pertencerem, ou serem acusados disso, a uma organização subversiva e clandestina — o Partido Comunista.Mas apesar de estar preparado psicologicamente, a prisão era sempre um grande choque, não era?
“Quando veio a minha prisão, eu já sabia o que é que havia de fazer. Tinha incutido que os pides não eram inteligentes. A sua actuação assentava essencialmente na força bruta, de maneira que tínhamos que ser mais fortes que eles. E éramos!
Passeia enfrentar as prisões e as torturas como uma fase da minha vida" (ri)
Que os seus pais não concordavam nada com ela... “Diziam que não levava a lado nenhum... mas eu, sempre curioso de saber; envolvi-me. Era uma fase que tinhamos que atravessar e vencer. Foi assim que eu fui ensinado".
Ingressa no PC.P e faz parte de uma das “células” que na altura existiam em Alpiarça. A organização clandestina cresce muito. Há alguns descuidos e mesmo “infiltrações”.Que tarefas lhe estavam atribuídas?‘Era estar-se onde estivessem pessoas. Nos ranchos, nas colectividades. Em todo o lado devíamos sentir os anseios das pessoas, aproveitar os movimentos populares para dar o enquadramento político, para apresentar as nossas propostas".
Para potenciar as lutas, o Partido Comunista abre portas (como militantes) a muitos mais trabalhadores. Houve consequências, por vezes negativas, não foi?‘Passou a ínteressar mais a quantidade que a qualidade, como era anteriormente. E quem anda à chuva molha-se".
Acaba por ser preso (precisamente por descuido de um dos seus camaradas), em Março de 1950. É levado directamente para Lisboa, sem que os esbirros dessem qualquer informação à sua companheira.
“Vi-me perdida para saber onde é que ele estava. Levaram-no daqui; tinha o Amilcar 14 meses e eu queria saber onde é que ele estava. Fui ao Posto e ninguém mo dizia. Até que houve um guarda que se compadeceu de mim e só me disse: ‘o seu marido não está aqui ". Mas também não me disse onde é que estava’ ,conta-nos Teodósia e acrescenta: “só passados uns dias é que, julgo que foi o Carlos Pinhão, sem eu saber onde o procurar, lá me indicou o nome da rua e eu lá fui para Lisboa”.
O tempo na prisão não é tempo perdido. Leocádio sempre que pode faz exercício físico. Lê, lê muito, escreve e estuda. Envolve-se em actividades onde aprende e ensina.
Em Junho de 1952 participa num levantamento de rancho, no Forte de Peniche e, com outros presos, protesta por escrito, por um seu camarada ter sido agredido.Em vésperas de poder ser solto é questionado pelo Director da Cadeia (ou Depósito de Presos, como oficialmente era denominada) sobre a sua futura conduta, caso lhe fosse concedida a liberdade.
“Não sei! Eu acabo de sair da prisão e não sei o que posso encontrar lá fora. Respondeu-me que nesse caso não me poderia deixar sair e retorqui’: A responsabilidade é sua.
Eram atitudes totalmente discricionárias. Eles não tinham nada que me apontar em termos de comportamento’.
Acabaram por libertar o Leocádio a 15 de Novembro de 1952, com liberdade condicional por 3 anos, com a condição de não acompanhar pessoas de mau porte, designadamente que professem ideias subversivas.
Vejamos excertos do Relatório do Director da Prisão (Arquivo da PIDE/DGS-IAN/TT — Q 189/50): “O seu valor político é de baixa craveira, no entanto ele julga-se num plano superior à maioria (...) empregando todo o seu tempo disponível em leitura e escrita (...). No entanto, sou de parecer que uma situação de liberdade vigiada seja mais proveitosa, aqui na Cadeia é impossível uma regeneração de pessoas desta mentalidade (...).
“Precisamente nove anos depois (a 14 de Novembro de 1961) volta a ser preso, assim como muitos outros camaradas. Ele bem tinha avisado que não comprometia as suas atitudes futuras, porque tudo tinha a ver com o que fosse encontrar lá fora". E cá , existia o mesmo de há muito:falta de liberdade, de direitos e muita repressão.
Desta vez o povo de Alpiarça reagiu e veio para a rua. " A malta já estava levantada, já ninguém tinha segurança, ninguém sabia se amanhã era presa ou não (...) quando íamos a sair do Posto em carrinhas, vinha uma multidão lá do jardim, a entrar pela rua ".
Segundo relatório da PIDE, quinze minutos após a saída dos agentes policiais e guardas da GNR, rebentaram foguetes e, de imediato, a população veio para a rua “fazendo uma gritaria infernal’, chegando-se mesmo a apedrejar a viatura da polícia e “na Rua do Casalinho, houve alguém que a coberto dos quintais (...), fez uns tiros de pistola (...) e de uma arma caçadeira” (Arquivo da PIDE/ DGS-IAN/TT— P 1038/61).
Para a PIDE eram claros os intentos dos populares em invadirem o Posto, a casa do Presidente da Câmara e a estação dos CTT, pelo “que o Comandante do Posto da GNR sentiu a necessidade de fazer alguns tiros para o ar (...)“, chegando, entretanto, reforços policiais de Santarém e Chamusca (idem).
Neste período colocaram-no (apesar de o terem achado de “baixa craveira”) na mesma sala de dirigentes ou funcionários comunistas como Dias Lourenço e Manuel Rodrigues. “Eu tinha tido bons informadores para me atirarem para um escalão mais elevado... mas não perdi nada com isso", diz-nos a rir, ao que rematámos, que no meio da desgraça, que tenha havido algo de positivo.
Leocádio corrige-nos. ‘Não foi desgraça, não considerei a prisão uma desgraça, porque eu nunca me senti preso, antes pelo contrário, senti-me sempre um ser livre’.
Dedica-se à pintura, com os ensinamentos de um médico de Coimbra, também preso. Anos mais tarde, numa exposição de pintura em Alpiarça, figuraram quadros seus, desses tempos de presídio.
Por cá, entre prisões ou depois desta última (seria libertado em 12 de Abril de 1967), desenvolve intensa actividade cultural. Participou como actor e/ou encenador em grupos de teatro, o último dos quais, o G.A.T.A.. Fez parte da secção cultural da “Música” e, como homem desejoso do saber, ainda arranjou tempo para se aperfeiçoar nas coisas da agricultura.Frequentou um curso de podador de oliveiras ministrado pelo regente agrícola Celestino Graça. António Nunes diz que o seu colega Celestino se referia aos apontamentos de Leocádio como um autêntico compêndio técnico.
Foi para Alcobaça tirar um outro curso, este mais complexo (e completo), de Agricultura Geral, com especialização em pomicultura.
Ia de bicicleta até aquela localidade e quando havia sessões de teatro, lá vinha ele, após despegar, até à terra, fazer o espectáculo.
Mal acabava a peça, montava a bicicleta e nem a casa ia. Chegava a Turquel, já com as padarias abertas, comprava pão e ia comendo, enquanto pedalava. Mais para diante, saciava a sede numa fonte. Chegava à Escola e “forrava”, porque estava o sol a nascer.
Em Março de 1974 envolve-se na luta dos tractoristas agrícolas de Alpiarça por aumento de salários.Não tivesse chegado Abril, quem sabe se não teria sido a sua terceira prisão.
Alguma vez se sentiu arrependido pelas opções tomadas, tendo em conta tudo o que passou ou por que passaram os seus familiares mais directos?
(Na gravação “ouve-se” um prolongado silêncio. Espera-se e não há resposta verbal. Leocádio, olhos nos olhos e muito sério, tinha-nos feíto um vigoroso “não” com a cabeça).
Em 2 de Abril de 2005 , a Câmara de Alpiarça condecorou Leocádio do Vale e António Jorge pelas suas lutas em prol da liberdade, Leocádio referiu então (e cito-o de memória) que “já era tarde demais, porque há uns tantos que já não estão entre nós e que lutaram com mais dedicação e competência».
É certo que muitos mais (homens e mulheres) são (foram) merecedores de reconhecimento público, mas aqueles dois alpiarcenses também o são.Após aquela data, tornámos a falar com o Leocádio e dessa conversa apenas queremos partilhar com os leitores uma sua frase acerca da medalha: ‘A Teodósia foi a outra metade da medalha".
( entrevista dada por Leocádio do Vale, ao Jornal Voz de Alpiarça em 15 de Maio de 2005 e aqui transcrito por mim, numa simples mas muito sincera homenagem)

2 comentários:

Joaquim Moedas Duarte disse...

Só depois de sair de Alpiarça, com a politização resultante da minha vida universitária, percebi toda a grandeza dos resistentes da minha terra.
Obrigado, Ana, por trazer aqui essa realidade, hoje tão esquecida pelos mais novos.

Beijinho

Paula Raposo disse...

Uma homenagem bem merecida a um grande Homem que não tenho o privilégio de conhecer pessoalmente. Beijinhos