quarta-feira, julho 22, 2009



FRAGMENTO DO HOMEM


Que tempo é o nosso? Há quem diga que é um tempo a que falta amor. Convenhamos que é, pelo menos, um tempo em que tudo o que era nobre foi degradado, convertido em mercadoria. A obsessão do lucro foi transformando o homem num objecto com preço marcado. Estrangeiro a si próprio, surdo ao apelo do sangue, asfixiando a alma por todos os meios ao seu alcance, o que vem à tona é o mais abominável dos simulacros. Toda a arte moderna nos dá conta dessa catástrofe: o desencontro do homem com o homem. A sua grandeza reside nessa denúncia; a sua dignidade, em não pactuar com a mentira; a sua coragem, em arrancar máscaras e máscaras.


E poderia ser de outro modo? Num tempo em que todo o pensamento dogmático é mais do que suspeito, em que todas as morais se esbarrondam por alheias à «sabedoria» do corpo, em que o privilégio de uns poucos é utilizado implacavelmente para transformar o indivíduo em «cadáver adiado que procria», como poderia a arte deixar de reflectir uma tal situação, se cada palavra, cada ritmo, cada cor, onde espírito e sangue ardem no mesmo fogo, estão arraigados no próprio cerne da vida?


Desamparado até à medula, afogado nas águas difíceis da sua contradição, morrendo à míngua de autenticidade - eis o homem! Eis a triste, mutilada face humana, mais nostálgica de qualquer doutrina teológica que preocupada com uma problemática moral, que não sabe como fundar e instituir, pois nenhuma fará autoridade se não tiver em conta a totalidade do ser; nenhuma, em que espírito e vida sejam concebidos como irreconciliáveis; nenhuma, enquanto reduzir o homem a um fragmento do homem. Nós aprendemos com Pascal que o erro vem da exclusão.


Autor: Eugénio de Andrade (poeta), in "Os Afluentes do Silêncio"
foto da net

6 comentários:

fj disse...

Passando por aqui para te deixar um abraço...

Nuno Miguel Carvalho disse...

Um texto sublime! Para ler e reflectir.
Parabéns.

Paúl dos Patudos disse...

Obrigado f. Jorge, desejo-te uma boa semana.
Fica bem
Ana Paula

Paúl dos Patudos disse...

Olá Nuno
Obrigado pela tua vista. Quanto ao texto de Eugénio de Andrade, acho muito actual, por isso o transcrevi aqui. É um texto muito excelente.
Fica bem
Ana Paula

Paúl dos Patudos disse...

opsss...
onde está vista deve ler-se visita.
O i escapou, :))

Rosan disse...

Oi Ana Paula.
Este testo e´a mais pura realidade do homem, em se preocupando só com lucros sem escrupulos, vai passando por cima do semelhante com um trator, sem querer saber de nada além de si.

Um bjo.
Rosandra.