domingo, outubro 29, 2006

ASSIM FOI... MAS NÃO SERÁ

conto

...Ela voltou-se para mim e perguntou:

-Na infância, foste uma criança feliz?

- Penso que sim, não sei bem.

Talvez, mas do meu pai , não recordo isso; miminho, um beijo, colinho, não me lembro de o ter feito .

- Então não tiveste uma infância feliz. Quero com isto dizer que te continuas ainda hoje a enganar. Sentes ainda falta desse amor, apesar de já seres adulta, sentes que seria importante para ti isso ter acontecido.

-Mas nos meios rurais, era assim. Os pais dedicavam-se á terra e a figura da mãe tinha de ser tudo; pai , mãe, amigos, irmãos...

Sabes, a minha mãe nunca me levou á escola. Fui sempre a pé e com as minhas amigas. Andávamos alguns kilómetros. No Inverno, fazia muito frio e ela, para eu chegar com as mãos quentes á escola, aquecia uma simples pedra na fogueira e depois embrulhava num papel de jornal, para não me queimar as mãos. Quando chegava á escola deitava a pedra fora e ficava com as mãos quentinhas para começar a escrever.

Olha, sabes uma coisa? Só comíamos carne ao domingo ( frango ou porco), durante os outros dias era sempre sopa e pãozinho para molhar e eu gostava!Vaca ou borrego nunca vinham para a mesa era para os ricos, sardinhas é que é bom; dizia o meu pai.

Tinha alguns brinquedos que ele me fazia, mas mais tarde comecei a ser eu a fazer, pois tinha muito jeitinho. Fazia as roupas para as minhas bonecas e costurava tudo á mão, ficava um mimo.

A minha mãe, como dever de todas as mães ( segundo ela dizia), ensinou-me a fazer tudo o que uma dona-de-casa deve saber: cuidar dos filhos, fazer comer, lavar roupa, passar a ferro, cuidar da casa etc.Tudo isto eu aprendi, mas a ser feliz, nem por isso.

Só tivemos a nossa primeira televisão quando eu tinha 11 anos, até aí , eu escutava a rádio. Talvez ainda hoje se reflita o meu amor pela rádio.

_ Pois é, minha linda, essa, entre outras, foi uma das tuas tábuas de salvação, para combateres, a tua solidão e o facto de teres sido sempre uma criança triste.

- Se queres que te diga, eu não culpo em nada os meus pais. Porque eles se limitaram a transmitir-me aquilo que eles próprios receberam como educação. Se calhar também não foram felizes. Todas as fotos que a minha mãe tirou , assim o revelam: um rosto sempre triste, sem um único sorriso. Hoje , eu quero muito manter o meu sorriso e a minha alegria de viver, sempre presente, apesar de tudo...

AP


1 comentário:

Manel do Montado disse...

Texto pungente, doído, cheio daquilo que era o Portugal de apenas há trinta e poucos anos.
A pé para a escola também eu ia, à chuva e ao sol, ao que calhava. Passava os Invernos sempre com as mesmas botas de borracha.
Como te compreendo. Hoje dou primazia à alegria de viver e tento dar aos meus filhos o que os meus pais deram a mim, porque não podiam, embora o quisessem.
Beijo e aparece sempre